Da fragilidade dos lavadouros públicos do Porto
Apontamentos sobre um património em risco
“O monumento histórico mantém uma relação diferente com a memória viva e com o tempo.” Françoise Choay. L'Allégorie du patrimoine (Seuil, 1992), 21.
Em dezembro de 2023, no dia em que inaugurou a exposição Vozes da Paisagem na FBAUP, informaram-me que o lavadouro da Agra1 (1940) tinha sido destruído no dia 01 de dezembro de 2023, para deixar lugar a um espaço de lazer ainda não definido, pouco importa talvez quem o destruiu mas essa demolição serve como mote para um apelo sincero à preservação além do registo fotográfico/arquivístico.
A instalação exposta era uma lembrança do lugar quotidiano no espaço do museu: uma proposta cartográfica dos lavadouros do Porto, como uma materialização do mapeamento realizado em 2020, impressa em tecido, remetendo ao significado da roupa, do pano de prato, do lençol. Este mapa-manifesto entrava em diálogo com uma mesa da Filó, um “arquivo das águas: entre mulheres e ruínas” com contribuições da minha avó, da minha irmã, das minhas amigas, mulheres que me rodeiam no meu quotidiano, e uma colagem sonora realizada pela Ana Arantes.
Esta instalação-manifesto é uma voz da paisagem, uma cristalização das vozes das mulheres, e talvez um grito: contra o esquecimento, para a memória, das mulheres da classe trabalhadora.
Com as rápidas mudanças urbanísticas e morfológicas da cidade, e para quem conhece a estratificação do urbanismo portuense, a destruição dos lavadouros parece quase inevitável, o Porto torna-se um caso de estudo, por ter ainda tantos lavadouros e tanques de água, que na maioria das metrópoles europeias, já desapareceram. São lugares frágeis, mas o caráter de ruína urbana dá-lhes um poder de transformação muito forte, são lugares que potenciam a criação artística, e que podem ser qualificados de monumentos históricos segundo a definição da Françoise Choay, os lavadouros são uma memória-viva: da sociabilidade das mulheres, da partilha das suas dores, resistências e afetos.
A “necessidade de gravar o que vai desaparecer” (Ines Weizman) é algo que é reforçado pelas políticas urbanas vorazes e especulativas, que não deixam lugar para a co-criação de espaços públicos, de espaços comuns. Rede de espaços de água, a sua demolição progressiva, apesar das tentativas de preservação e da inclusão dos mesmos no Parque Patrimonial das Águas (protegido pela WAMU-Net/UNESCO) é sintomático dos modos de pensar e fazer atuais, a falta de consideração pelo contexto histórico, e a tabula-rasa constante.
O ato da tabula-rasa e a pouca preocupação pelo contexto e a história, nos condena a repetir os mesmos erros, e a desvalorizar o patrimônio histórico. A existência dos lavadouros no Porto é um ato de resistência perante o esquecimento e o apagamento constante da história.
A arquitetura dos lavadouros é uma arquitetura da escassez e da função pura, que joga de maneira simples e direta com os elementos. A luz e a água se cruzam e entrelaçam, deixando visível o movimento e o trabalho árduo da lavagem de roupa. No caso do Lavadouro da Agra, é uma arquitetura brutalista que vem pousar uma cobertura plana, uma pala, sobre um tanque de granito já existente, com apoio em pilares redondos de betão. A estrutura bruta dialoga com os elementos naturais, e se aconchega contra um muro de granito curvo. As escadas adaptam-se a forma orgânica do muro da casa e nos levam até à mina de água, os lavadouros mais antigos em várias situações, encontram-se abaixo do nível da rua, a água, muitas vezes debaixo do solo, surge dele e vem a superfície nestes momentos, deixando visível a paisagem ocultas dos cursos de água e rios.
A beleza efêmera e frágil deixa lugar à tristeza da in/evitável demolição, ficamos com a imagem desoladora de uma obra em curso, o que nos resta são as fotografias, que são fragmentos de um espaço, já fantasmagórico.
The fragility of Porto's public washhouses
Notes on a heritage at risk
"The historical monument maintains a different relationship with living memory and with time." Françoise Choay. L'Allégorie du patrimoine (Seuil, 1992), 21.
In December 2023, on the day the exhibition Voices of the Landscape opened at the FBAUP, I was told that the Agra washhouse (1940) had been destroyed on 1st December 2023, to make way for a yet undefined leisure space. It may not matter who destroyed it, but this demolition serves as a motto for a sincere appeal for preservation beyond the photographic/archival record.
The installation on display was a reminder of the everyday place in the museum space: a cartographic proposal of Porto's washhouses, like a materialisation of the mapping carried out in 2020, printed on fabric, referring to the meaning of clothes, dishcloths and sheets. This manifest map entered into dialogue with a table from Filó, an "archive of waters: between women and ruins" with contributions from my grandmother, my sister, my friends, women who surround me in my daily life, and a sound collage made by Ana Arantes.
This installation-manifesto is a voice from the landscape, a crystallisation of women's voices, and perhaps a cry: against oblivion, for the memory of working-class women.
With the rapid urban and morphological changes in the city, and for those who know the stratification of Porto's urbanism, the destruction of the washhouses seems almost inevitable. Porto becomes a case study because it still has so many washhouses and water tanks, which in most European metropolises have already disappeared. They are fragile places, but their character as urban ruins gives them a very strong power of transformation. They are places that enhance artistic creation, and can be described as historical monuments according to Françoise Choay's definition, the washhouses are a living memory: of women's sociability, of the sharing of their pain, resistance and affections.
The “need to record what is going to disappear” (Ines Weizman) is something that is reinforced by voracious and speculative urban policies, which leave no room for the co-creation of public spaces, of common spaces. The network of water spaces, their progressive demolition, despite attempts at preservation and their inclusion in the Water Heritage Park (protected by WAMU-Net/UNESCO) is symptomatic of current ways of thinking and doing, the lack of consideration for the historical context, and the constant tabula-rasa.
The act of tabula rasa and the lack of concern for context and history condemns us to repeating the same mistakes and devaluing historical heritage. The existence of the washhouses in Porto is an act of resistance in the face of oblivion and the constant erasure of history.
The architecture of the washhouses is an architecture of scarcity and pure function, which plays simply and directly with the elements. Light and water intersect and intertwine, making visible the movement and hard work of washing clothes. In the case of the Agra washhouse, it is a brutalist architecture that places a flat canopy, a sun visor, over an existing granite basin, supported by round concrete pillars. The raw structure dialogues with the natural elements and nestles against a curved granite wall. The stairs adapt to the organic shape of the house's wall and take us down to the water source. The oldest washhouses are often below street level, and the water, often below the ground, emerges from it and comes to the surface at these moments, leaving the hidden landscape of watercourses and rivers visible.
The ephemeral and fragile beauty gives way to the sadness of the un/avoidable demolition, we are left with the desolate image of a construction project in progress, what remains are the photographs, which become fragments of an already phantasmagoric space.
Série de crónicas sobre os Lavadouros do Porto, no contexto do projeto independente “Habitar a água. Documentar as práticas urbanas das mulheres”.
Agra. Substantivo feminino; Campo cultivado ou que está pronto para ser cultivado; agro. Terreno encharcado, lodacento; brejo, pântano. Etimologia (origem da palavra agra). De agro, do latim agru, campo. fonte: https://www.dicio.com.br/agra/
que lindo!